03 abril 2016

Regresso ao futebol de rua? Uma questão cada vez mais recorrente


Cresce cada vez mais a ideia generalizada de que se deve regressar ao futebol de rua como forma de evolução do futebol Português. Que todos os males do futebol actual são a formatação do futebol e a falta de criatividade, e que, como isso seria evitável com o regresso do futebol de rua, sem regras, sem que haja ninguém a dizer como se deve fazer.

Será esse o caminho a seguir?

Antes de qualquer decisão ou argumento, deve-se definir primeiro o que se entende por futebol de rua.
Uma definição simplista pode ser dizer que o futebol de rua é o futebol praticado em qualquer espaço (campo improvisado), no qual há balizas (existentes ou feitas à pressão), uma bola e duas equipas (nem sempre com o mesmo número de jogadores), no qual os jogadores competem entre si sem regras definidas A priori, sem árbitro, sem treinador e sem duração definida.
Sem dúvida que para qualquer questão existem sempre prós e contras, por isso mesmo é que se deve pesar todas essas questões antes de defender um ponto de vista ou tomar uma decisão. Partindo deste princípio, vamos então procurar os prós e os contras.

Como pontos a seu favor, poderemos considerar:

- A liberdade que os jogadores apresentam o desenrolar do jogo, a qual vai melhorar a capacidade de decisão do jogador, melhorando também a criatividade e capacidade de improvisação;
- Poderemos considerar também como ponto bastante importante, o tempo de prática que os jogadores apresentam no futebol de rua, não havendo horários fixos com durações pré-definidas;
- Outro ponto será a passagem por várias posições de todos os jogadores, desde guarda-redes, defesa, médio ou avançado;
- O facto de praticamente não haver faltas é para mim um ponto positivo, e também o não haver limite de idades, fazendo com que no mesmo campo se defrontem jogadores com várias idades e diferentes níveis de maturação, isto torna-se importante pois ajuda os jogadores a criar estratégias de evitar o contacto e de superação;
- A criação de competição, muitas vezes por causa do excesso de jogadores que leva ao jogo do “roda e bota fora”, o qual vai criar uma necessidade de querer sempre ganhar para estar sempre a jogar e não do lado de fora a ver os outros jogar enquanto esperam pela sua vez de entrar.

Como pontos que eu considero menos positivos, posso apontar:

- O individualismo que se proporciona nos jogadores mais dotados tecnicamente, devido à facilidade com que conseguem passar pelos adversários, levando a que estes estejam sempre a querer exibir-se e a resolver o jogo individualmente;
- A tomada de decisão que irão apresentar poderá muitas vezes não ser a melhor para o desenrolar das jogadas, quer seja por uma má leitura do jogo, por achar que o colega melhor posicionado é fraco e não lhe passam a bola ou simplesmente porque não entendem a essência do jogo, preferindo voltar para trás, ou fintar outra vez os adversários todos ou pura e simplesmente voltar a fazer uma “cueca” para humilhar o adversário ou impressionar a miúda que está a ver o jogo;
- A criação de “vícios” nos jogadores que serão difíceis de corrigir na chegada ao futebol competitivo/federado e comportamentos inadequados para com colegas e adversários;
- O “gordinho” vai sempre à baliza e os mais fracos à defesa ou ficando mesmo de fora do jogo, criando muitas vezes hábitos de chutar a bola para fora nestes para não comprometer a equipa e não ter os outros “em cima” deles;
- Por último, o facto de os jogadores apenas conseguirem jogar com o seu pé mais forte, servindo o outro praticamente para subir para o autocarro, evitando fazer qualquer acção técnica com este.

Em contraponto vemos agora nos escalões de base de clubes e academias treinadores que, por culpa de quererem chegar a treinadores de seniores, por quererem sempre ganhar ou pura e simplesmente por não saberem mais, estão a destruir o que de bom tinha o futebol português, a criatividade.

Neste ponto consigo detectar várias falhas:

- A falta de criatividade, optando por um estilo de jogo que obriga à falta de iniciativa;
- A mecanização de movimentos, não dando liberdade na tomada de decisão do atleta nem dando hipótese de o jogador perceber o porquê de estar a fazer dessa forma;
- A existência de exercícios fechados no qual o treinador obriga os jogadores a fazer de determinada forma, retirando o prazer de treinar e jogar;
- A contante gritaria de ordens por parte do treinador nos jogos, o chamado treinador “playstation”, que retira a tomada de decisão dos jogadores.

A meu ver, o ideal seria um meio-termo entre os dois, isto é, a existência de treinos orientados com incentivo para a liberdade criativa.

No fundo traduzir-se-ia em:

- Fomentar o prazer em jogar futebol, criando exercícios com muito jogo;
- Fomentar a tomada de decisão, criando exercícios com objectivos definidos, explicando os critérios de sucesso mas deixando a tomada de decisão quanto como atingir o sucesso dependente do jogador;
- Fornecer feedback correctivo, parando o exercício, indagando o jogador se sabe porque se parou o exercício e levando a que o jogador perceba por ele próprio qual a melhor solução para um mais correcto desenrolar da jogada;
- Potenciar um modelo de jogo que permita o desenvolvimento de todos os jogadores, tendo sempre a noção que o jogador se desenvolve mais rápido se não tiver medo de ter a bola em seu poder;
- Sempre que um atleta se evidenciar no seu escalão, deve ser colocado a competir em escalões mais competitivos de modo a ter novos estímulos e desafios e a não estagnar o seu desenvolvimento;
- Fornecer vários estímulos competitivos de diferentes níveis aos jogadores, de modo a criarem diferentes estratégias de resolução de problemas;
- Nos jogos incentivar à iniciativa, à tomada de decisão própria e ir fornecendo algum feedback correctivo após as jogadas e nos tempos de paragem em momentos no qual o atleta possa estar concentrado na correcção e entendê-la;
- Manter a necessidade de superação e vontade de ganhar através de exercícios de competição no treino de modo a que os atletas percebam a essência do jogo e evoluam de forma mais rápida.

Para finalizar, após todos estes argumentos prós e contras, eu defendo o futebol de rua. Mas essencialmente defendo que o treino deva ser conduzido de modo a potenciar o jogador e não a formata-lo.
Acredito sobretudo que se deveria acima de tudo criar uma sociedade mais segura, na qual as crianças poderiam voltar a brincar na rua sem medo, acredito que se deveria incentivar o desporto entre as crianças evitando que se passe o tempo todo à frente de um ecrã, acredito que o governo deveria pensar nestas questões e diminuir o tempo de escola para as crianças, ou pelo menos dar mais espaços livres de lazer e recreação para a criança poder explorar e jogar livremente, acredito em menos horas de trabalho para que os pais possam brincar com os filhos, acredito em pais menos receosos e protectores que permita a que se volte a ter crianças sem medo de cair no alcatrão depois de um encontrão de um adversário, de modo a que possam criar estratégias e defesas que possam ser potenciadas em prol do futebol federado.

O futebol de rua só continuará a ser futebol de rua se for praticado no seu espaço natural, nas academias, escolas e clubes apenas se deve potenciar o que de bom tem o futebol de rua e orientar essas características em prol da essência do jogo e do colectivo.

Serginho

Sem comentários:

Enviar um comentário